
Uma falsa entrevista com o falso Lula de Baependi
- 27 de fevereiro de 2019
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- Jotapê Jorge
- Publicado em MIMIMILLENNIAL
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Por Jotapê Jorge, de Baependi, MG
Chego a Baependi numa manhã de terça-feira. Chove. Vista da janela do ônibus, A cidade das belas paisagens não me parece assim tão bela. É uma cidadezinha qualquer, como qualquer outra perdida entre as cinco mil e tantas cidades do Brasil: casas baixinhas caiadas de branco, uma igrejinha tímida de frente a um coreto. Impressiona-me, no entanto, o grande número de “passa-se o ponto” que antevejo no comércio, através da cortina d´água que se forma da marquise de concreto da rodoviária. Desço do carro e vou assuntar-me num pequeno quiosque, misto de venda de lanches e guichê de informações turísticas.
— Boa tarde – digo à funcionária, uma mulher de cabelos grisalhos – a senhora por acaso conhece a rua Demócrito Seabra?
A mulher mal me olha por cima do livrinho de palavras cruzadas Coquetel Grande Aquiles.
— Você está indo ver o Lula?
*
Para todo o resto do Brasil, Lula está preso na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba. Em Baependi, no entanto, o ex-presidente está livre e bem, trabalhando em sua própria oficina mecânica, instalada na garagem de sua casa na rua Demócrito Seabra, número 13 (guarde esse número). A senhora da rodoviária me explica rapidamente como chegar a tal rua e ainda se oferece para me vender um guarda-chuva vagabundo que eu, a contra-gosto, comprei.
Mesmo que a distância fosse curta – saindo da rodoviária, sobe-se a rua 15 de Novembro, um ladeirão íngreme desses que a gente encontra em Minas Gerais, até a rua coronel Oscar Porto. Daí à esquerda até que o calçamento de pedras vire asfalto e, daí, terra batida, que naquele chuvão já era um barreado só – cheguei com o guarda-chuva em pandarecos. Por sorte pude pedir nota. Espero que a redação me compense os 20 reais.
A casa do Lula falso de Baependi é um casebre simples, de alvenaria e um andar só, com uma jardinzinho na frente onde ciscam um par de galinhas. Na porta vermelha da estrada está pintada com a estrela do PT. Sobre o pórtico, está escrito “Quem não acreditou na estrela, sequer sonhou!” Ao lado da construção há uma menor, claramente improvisada, feita em madeira grosseira. Numa placa se lê em letras toscamente grafadas: “Conserta-se automóveis e motores de geladeira.”
Bato palmas para me anunciar.
— Ô, presidente! – grito.
Lá de dentro me aparece o Lula limpando a graxa das mãos com um pano. Ele me sorri, com a barba desgrenhada, preta, e um olhar fulgurante. Por incrível que pareça, não se parece com o Lula. Está mais para uma versão cômica do ex-presidente, talvez imitada por um humorista de A Praça é Nossa. Mas mais incrível é a falta o dedo mínimo. Por um instante chego a pensar na loucura de um homem que corta o próprio dedo por um personagem, mas então lembro-me dos inúmeros Kens Humanos e aquilo me parece normal.
— Opa, garoto! Você que veio de São Paulo? – ele me pergunta. Há, de fato, grande semelhança entre os jeitos de falar.
— Sim senhor.
— Vamos ali dentro da casa que eu te sirvo um café e a gente conversa. Ô Toninho! Eu vou ali dar uma entrevista para um site e já volto, aguenta as ponta aí.
*
A casa é um retângulo dividido em três cômodos, o maior serve de cozinha, salinha e estar e está decorado com inúmeros pôsteres do Corinthians campeão. Os outros dois são o quarto, que o falso Lula de Baependi me mostra todo orgulhoso de sua colcha de onça, e o banheirinho.
Sentamo-nos à mesa. No fogão a fervura do café vai subindo enquanto o falso Lula me conta a história louca de sua derrocada. Corria o ano de 1999 (“você é corintiano também? Lembra daquele timaço? Olha, vou te falar, se não fosse o Marcão, dava para a gente beliscar a Libertador.”). Foi naquele ano que uns sujeitos apareceram na porta de seu apartamento em São Bernardo do Campo. Disseram-lhe que eram de um instituto americano de pesquisa dizendo que tinham uns gráficos para lhe mostrar sobre a futura eleição presidencial, marcada para dali dois anos.
— Eu nunca gostei muito de gráficos, mas falei para a galega: “Vou, que esses americanos devem saber alguma coisa.”
Levaram-no ao Fogo de Chão. Lá o falso Lula de Baependi se deliciou com chuletas e caipirinhas. Tomou tanto que terminou num fogo homérico. Apagou. Ele conta ainda:
— Me botaram tesão de vaca ou qualquer outra coisa na minha bebida. Acordei num quartinho sujo. Nem sei quanto tempo tinha passado. Só sei que, quando vi, eu estava fazendo discurso na TV, mas não era eu quem falava.
A partir daí a vida do falso Lula de Baependi tornou-se um inferno. Ele me conta que os americanos de americanos não tinham nada. Que era gente de empreiteira, que armaram um complô para eleger seu sósia presidente e fazer maldades com o Brasil.
— Onde já se viu eu andando por aí com o Sarney?
Soltaram-lhe do cativeiro no começo dos 2000, numa ruazinha de Baependi, coberto de cachaça.
— Para o povo achar que eu era só mais um bêbado louco.
Os primeiros meses foram de desilusão. Ficava pelas ruas implorando uns trocados. Queria comprar uma passagem de ônibus, voltar para São Bernardo, desfazer aquela trama maligna. Mas ninguém acreditava. Foi aí que começou a ser chamado de “o Lula falso”. O pior era o ciúmes que sentia sempre que via o Lula com dona Marisa na televisão.
— Era de cortar o coração de um homem.
Foi então que lhe veio a idéia. Precisava arranjar um trabalho para ser respeitado. Além disso, já estava de saco cheio de dormir no coreto. Com custo, arranjou um bico numa oficina mecânica. Suas habilidades de torneiro o ajudaram a subir na vida, e logo ele tornou-se sócio do ex-patrão. Daí a se virar dono da própria retífica foi um pulo. Com a subida de vida, passaram a respeitá-lo mais. Ninguém mais o chamava de “falso Lula”, apenas de “o Lula da mecânica”, ou “o Lula da cidade”. Quando o “Lula de verdade” foi eleito, já tinha se tornado um cidadão do lugar.
— Daí eu pensei… Vou largar tudo que eu construí aqui para ir atrás dessa parada? Vai que eles me dão tesão de vaca de novo?
Depois disso, passou a se desinteressar por política. Chegou até votar no seu “sósia”, e mesmo quando seu partido se envolveu com escândalos de corrupção, não se desencantou (“onde já se viu o PT envolvido com corrupção?”). Além disso, a vida pacata de Baependi o tinha conquistado.
— E pensar que todo esse tempo eu fiquei gastando com política, com sindicado, quando eu queria só uma “casa no campo” –conta ele, imitando os acordes da música de Elis Regina.
Ficou triste apenas duas vezes, quando morreu sua galega (“sonhava que ainda ia encontrar ela e dizer a verdade”) e quando o “sósia” foi preso. Foi sua época mais difícil em Baependi.
— O pessoal me apontava, mexia comigo no bar. Aí eu é que não queria mais ser o Lula – diz, rindo.
Já estamos no terceiro café. Lá fora a chuva parou, e o por do sol vai se estendendo por trás da cidade. Antes de ir embora, pergunto-lhe em quem votou nas eleições de 2018. O falso Lula de Baependi abre um sorriso malicioso.
— No primeiro turno votei no Boulos, que é também um falso Lula. No segundo no Bolsonaro, porque acho que ele pode dar um jeito nesse país, e também não gosto daquele tal de Andrade. Quer maior prova de que o falso Lula não sou eu?
Jotapê Jorge é um jornalista falso, como este texto. Ele também escreve umas bobagens no Twitter.
Sobre o autor
Queria ganhar a vida escrevendo, mas descobriu que não sabia usar à crase.